Dom Genival Saraiva de França
Bispo emérito de Palmares (PE)
As relações interpessoais e institucionais nem sempre se regem pelos parâmetros da sadia convivência, do respeito mútuo, da colaboração recíproca, da dignidade. Sob a ótica social e econômica, uns pertencem à categoria de grandes, ricos, fortes, sábios, enquanto outros são tidos como pequenos, pobres, fracos, ignorantes. Dessa maneira, são visíveis as diferenças e desigualdades no mundo das pessoas e no universo das instituições. Muitos fatores, ao longo da história, têm contribuído para a manutenção desse fenômeno humano, dessa realidade social.
No mundo prostrado e esmagado pelo peso da pandemia do coronavírus, há algo de novo, hoje: grandes e pequenos, fortes e fracos, ricos e pobres, sábios e ignorantes estão na mesma condição de fragilidade. Nenhuma pessoa pode considerar-se imune porque sempre está exposta ao perigo concreto de contagio, qualquer que seja seu perfil socioeconômico; por sua vez, as instituições experimentam as suas consequências, basta que se analise a repercussão dessa epidemia na sua organização e funcionamento. Na história da humanidade, em matéria de pandemia, não há precedentes semelhantes, quando são levadas em consideração a rapidez da contaminação, a extensão geográfica de sua presença e a velocidade nos registros estatísticos da doença e morte dos pacientes.
Embora as vítimas do Covid-19, na sua grande maioria, sejam pessoas idosas, adultos outros, jovens e crianças também compõem as estatísticas de sua taxa de letalidade. A respeito do isolamento social e o que isso representa para sua vida e para a economia do país, todas as pessoas fazem sua leitura, com ou sem rigor científico, e se comportam de conformidade com sua compreensão. Por isso, há posicionamentos, em muitos casos, contrastantes, conflitivos que repercutem, negativamente, na vida da população. Assim, por exemplo, “propor o fim de medidas de isolamento social agora seria um ‘cálculo imoral’, ou seja, sacrificar algumas vidas para ter o comércio funcionando.” Sob o aspecto moral, ético e político, as pessoas, cujo CFP é uma das expressões de sua identidade, têm uma indiscutível precedência, em relação à finalidade, objetivo e organização das instituições industriais e comerciais, identificadas pelo seu CNPJ, cujas atividades, em face da vida, são sempre vistas como “atividades meio” e não “atividades fim”.
A propósito de CPF, milhões de brasileiros, aptos a receberam o auxílio emergencial de R$ 600,00 (seiscentos reais) do governo federal, tomaram consciência de sua importância porque não o tinham ou por haver necessidade de regularização, no ato do cadastramento, fato que provocou grande transtorno na sua vida. É inquestionável que o novo coronavírus, além do mal em si, trouxe consigo problemas complexos na vida das pessoas e no funcionamento das instituições, fato que exige ciência e lucidez, na formulação de políticas públicas pertinentes.
Visão unilateral é sempre limitada, tendenciosa, perigosa. Assim, recentemente, pessoas do setor industrial/comercial falaram da “morte de CNPJs”, em decorrência da pandemia, isto é, encerramento ou dificuldade de funcionamento de empresas no país, fato que, em qualquer situação, tem sempre consequências sociais. Mas, a “morte de CNPJs” nunca pode ser considerada motivo para se descuidar da “morte de CPFs” que, no Brasil, chega a um elevado e crescente número, a cada dia. Tenha-se presente esse fato possível ou real: diferentemente da “morte de CPFs”, que é definitiva, a “morte de CNPJs” pode conhecer a volta ao funcionamento regular, com seu “restabelecimento”, qualquer que tenha sido a causa de sua “morte” – endividamento, descapitalização, perda de mercado, dificuldade de acesso a crédito, etc. Em qualquer contexto, a pessoa (CPF) precede a instituição (CNPJ), a vida precede a atividade. A esse respeito, os antigos tinham muita clareza e a explicitaram com muita sabedoria: “Primeiro viver, depois trabalhar”.
Em face da pandemia do Covid-19, que tem reflexos comuns e peculiares em cada país, homens públicos, em sua função política ou empresarial, precisam entender que não pode haver conflito entre economia e vida, não deve haver competição entre economia e medidas que visam salvar a vida. Antes, as pessoas que têm responsabilidades institucionais, como governantes, legisladores, profissionais do poder judiciário e empresários, ao invés de radicalismos, paralelismos e conflitos, devem assumir uma atitude de “colaboração recíproca”, na gestão dessa grande crise provocada pelo coronavírus. A população está sendo atingida, severamente, como revela a atualização diária da estatística de casos de infecção e de morte no Brasil.