Por Dom Antonio Carlos Cruz Santos, MSC*
Na festa de Santa Mônica, dia 27 de agosto deste ano, celebramos 20 anos do falecimento de dom Helder Camara, 13 anos de dom Luciano Mendes de Almeida e dois anos de dom José Maria Pires. Parece que a mãe de santo Agostinho, o bispo de Hipona, tem uma predileção pelos bispos proféticos brasileiros.
Imagino a alegria de dom Helder se conhecesse o pontificado do papa Francisco, pois sentiria confirmado nos seus sonhos, que na verdade são sonhos de Deus. Por outro lado, em contextos diferentes, dom Helder antecipou muitas coisas que o Espírito hoje sopra pela boca do papa Francisco.
Como jovem, na década de 1980, bebi e vivi de tudo aquilo que se vivia na sociedade e na Igreja naquele período: o início do pontificado de um papa não italiano, pois o último tinha sido o holandês Adriano VI, falecido em 1522. João Paulo II, um polonês cheio de carisma e com uma capacidade enorme de se comunicar com os jovens (1978); as conclusões da Conferência Episcopal Latino-americana e Caribenha em Puebla, e a opção preferencial pelos pobres e pelos jovens (1979), a primeira vinda de um papa ao nosso país, o país com o maior número de católicos do mundo (1980), a abertura política com as Diretas Já (1984) etc.
Nesse cenário destacava-se o nosso dom Helder com uma mistura de pastor, profeta e poeta. Líamos os seus livros, as suas poesias e comíamos os seus gestos, apesar da censura que tentava velar a sua transparência. Como diz nosso povo, tentavam tapar o sol com a peneira. Os raios sempre vazavam para fora da peneira da repressão e das instituições. Só o vi pessoalmente uma única vez, na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, em 1985, por ocasião do Ano Internacional da Juventude, na execução da Sinfonia dos Mundos. Era apenas um pontinho branco de braços abertos no palco, regendo uma multidão, enquanto o maestro Isaac Karabtchevsky regia a orquestra do Projeto Aquarius, tendo Fafá de Belém como uma das solistas. Até hoje guardo essa imagem impregnada no coração.
O que há em comum entre esses dois profetas, entre dom Helder e o papa Francisco? Poderíamos citar inúmeros exemplos, porém apenas destacarei três aspectos fundamentais desses dois homens de Deus, o Dom da Paz e o Papa da Misericórdia.
Uma Igreja em saída (Uma Igreja ao encontro dos pobres): O papa Francisco no nº 24 da Exortação Apostólica Evangelii gaudium (A alegria do Evangelho) nos mostra que “a Igreja ‘em saída’ é a comunidade de discípulos missionários que ‘primeireiam’, que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam”. A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor, e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos”. Dom Helder fez isso com maestria. Os pobres como presença real do Senhor estavam sempre diante dos seus olhos: “Há a Eucaristia do Santo Sacramento: a presença viva do Cristo sob as aparências do pão e do vinho. E há uma outra Eucaristia, a Eucaristia do pobre: aparência de miséria? Realidade do Cristo!”
A Igreja: o profetismo do nosso papa não é somente para fora, mas para dentro, de onde recebe tantas críticas. Denuncia a tentação de uma Igreja autorreferente que anuncia a si mesma e não ao Senhor Jesus. Alerta para o risco de uma Igreja que vive na mundanidade, na medida em que “faz as coisas de Deus”, porém nem sempre movida pelo Espírito de Deus. Uma Igreja que não consegue construir pontes com outras expressões religiosas. Dom Helder dizia: “Se eu não me engano, nós, os homens de Igreja, deveríamos realizar dentro da Igreja as mudanças que nós exigimos da sociedade”. Também dirá o nosso bom bispo: “A Igreja não é sempre tão bela, tão pura, tão corajosa e sincera como ela deveria, e mesmo como ela o quereria ser”. Enfaticamente, a favor do ecumenismo, bradará: “Jesus disse que ele é a porta do aprisco, do redil. Então, por que temos tantas vezes a tentação de sermos nós mesmos a porta?… É necessário que se passe através de nossa porta, de nossas definições, de nossas linguagens! Mas não! O Cristo basta! Basta uma porta, O Cristo!”.
A paz: O papa Francisco na sua mensagem para o 50º Dia Mundial da Paz, celebrado em 1º de janeiro de 2017, apresenta a não violência como um estilo de uma política para a paz. Portanto, nos dirá no nº 5: “A construção da paz por meio da não violência ativa é um elemento necessário e coerente com os esforços contínuos da Igreja para limitar o uso da força através das normas morais, mediante a sua participação nos trabalhos das instituições internacionais e graças à competente contribuição de muitos cristãos para a elaboração da legislação a todos os níveis. O próprio Jesus nos oferece um “manual” desta estratégia de construção da paz no chamado Sermão da Montanha. As oito bem-aventuranças (cf. Mateus 5, 3-10) traçam o perfil da pessoa que podemos definir feliz, boa e autêntica. Felizes os mansos – diz Jesus –, os misericordiosos, os pacificadores, os puros de coração, os que têm fome e sede de justiça”. Dom Helder vestiu essa camisa da não violência e a viveu até o fim, por razões evangélicas e estratégicas, porém seu pacifismo não era passivismo, era uma pressão moral libertadora. “A não violência não é de forma alguma uma escolha de fraqueza e da passividade. É crer na força da verdade, da justiça e do amor do que nas forças das guerras, das armas e do ódio”. “Eu não gosto muito da palavra não violência. Prefiro mil vezes a expressão de Roger Schutz: A violência dos pacíficos”. Ele mesmo carregava essa violência dos pacíficos como um modo de viver: “Chegando ao fim da minha vida, eu vejo que o mais belo presente que Deus me fez é o de permitir que jamais o ódio ou o rancor tomasse lugar no meu coração”.
Que nesses tempos de intolerância, de violências físicas e verbais, sobretudo com os mais excluídos, cercados por uma nuvem de testemunhas (dom Helder, dom José Maria Pires etc) e tendo os olhos fixos em Jesus (Cf. Hb 12,1-3) possamos rezar como dom Luciano Mendes: “Senhor Jesus, não vos pedimos que nos livreis das provações, mas que concedais a força do vosso Espírito para superá-las em bem da Igreja. A certeza do vosso amor nos renova cada dia. A alegria de servir aos irmãos é nossa melhor recompensa. Ensinai-nos, a exemplo de nossa Mãe, a repetir sempre “sim” no cumprimento da vontade do Pai. Amém!”
*é bispo da Diocese de Caicó (RN) e vice-presidente da CNBB NE 2