No dia 31 de outubro de 1999, há 20 anos, católicos e luteranos assinaram, em Augsburg, Alemanha, uma Declaração sobre a Doutrina da Justificação, conhecida como “Declaração Conjunta Luterano-Católica sobre a Doutrina da Justificação por Graça e Fé”.
Dom Manoel João Francisco, bispo de Cornélio Procópio (PR) e presidente da Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-religioso da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) escreveu um artigo no qual conta e retoma como foi o processo até chegar à declaração conjunta.
No número 19 da Declaração, luteranos, católicos, metodistas reformados e anglicanos “confessam juntos que o ser humano, no concernente à sua salvação, dependem completamente da graça salvadora de Deus”.
Talvez estejamos a nos perguntar: “Como foi possível este acontecimento? Houve concessões das partes?”. Segundo o bispo, não houve concessões de nenhuma das partes. “Ecumenismo não se faz renunciando a identidade da própria fé. Nenhuma Igreja pode fazer tal concessão. Pelo contrário, deve conhecer, cada vez mais, sua fé, para melhor respeitar a fé do irmão”, ressaltou o presidente da Comissão para o Ecumenismo da CNBB.
Antecipando as comemorações, Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), do qual a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil faz parte, promove hoje, às 20h, na Comunidade Evangélica de Confissão Luterana em Brasília, EQS 405/406, uma celebração ecumênica para marcar a data.
Conheça o artigo na íntegra.
20 anos da Declaração da Doutrina da Justificação
Há 20 anos, no dia 31 de outubro, católicos e luteranos assinaram, em Augsburg, Alemanha, uma Declaração sobre a Doutrina da Justificação, conhecida como “Declaração Conjunta Luterano-Católica sobre a Doutrina da Justificação por Graça e Fé”. Posteriormente, o Conselho Metodista Mundial, (2006), a Comunhão Anglicana (2017) e a Comunhão Mundial das Igrejas Reformadas (2017) também assinaram a mesma Declaração. Por ocasião da adesão da Comunhão Anglicana, a Revda. Dr. Kaisamari Hintikka, assistente do secretário-geral da Federação Luterana Mundial, expressou sua alegria com estas palavras: “O fato de que todas as Igrejas históricas do ocidente agora compartilham um entendimento comum da justificação é uma maneira maravilhosa de marcar o aniversário da Reforma. Aquilo que costumava nos dividir, agora na verdade nos une”.
Antecipando as comemorações, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) está convidando para uma celebração ecumênica, no dia 04 de setembro, na Comunidade Evangélica de Confissão Luterana, em Brasília-DF.
Penso ser desnecessário insistir aqui sobre a importância deste “Documento”. Basta lembrar que a doutrina da justificação pela fé foi o carro chefe de toda a teologia de Lutero. Não é uma verdade de fé como as outras, mas o centro e o critério em torno do qual se articulam todas as outras verdades. Sobre esta doutrina “a Igreja permanece ou tomba”. Dela não se pode afastar ou fazer concessões, mesmo que o céu e a terra venham desmoronar. (Art. De Esmalcade, II, 1). A Igreja católica também dá a esta doutrina grande importância. O Concílio de Trento se deteve longo tempo, de 23/06/1546 a 13/01/1547, sobre ela. Foram 44 Congregações especiais e 61 Congregações gerais, resultando no Decreto sobre a Justificação com um Prólogo, dezesseis capítulos e trinta e três cânones.
Justamente por causa de sua importância e dos maus entendidos, católicos e luteranos, no século XVI, se lançaram condenações e excomunhões mútuas. Com a Declaração Conjunta muda-se o cenário. O clima já não é mais o de reservas, suspeitas, polêmica e confronto. A disposição agora é de aceitação recíproca. Mostra-se que “entre luteranos e católicos (e também metodistas, reformados e anglicanos) há um consenso em verdades básicas da doutrina da justificação” (DC 40). Luteranos, católicos, metodistas reformados e anglicanos “confessam juntos que o ser humano, no concernente à sua salvação, dependem completamente da graça salvadora de Deus” (DC 19). “Confessam também que não sobre a base de nossos méritos, mas da graça e na fé na obra salvífica de Cristo, somos aceitos por Deus e recebemos o Espírito Santo, que renova nossos corações, nos habilita e nos chama a realizar as boas obras” (DC 15). Com isso as condenações doutrinais do século XVI são suspensas e os anátemas do passado não podem ser aplicados ao atual ensino das cinco Igrejas (DC 41).
Talvez estejamos a nos perguntar: “Como foi possível este acontecimento?”. Houve concessões das partes? Não. Não houve concessões de nenhuma das partes. Ecumenismo não se faz renunciando a identidade da própria fé. Nenhuma Igreja pode fazer tal concessão. Pelo contrário, deve conhecer, cada vez mais, sua fé, para melhor respeitar a fé do irmão. Penetrando mais profundamente na verdade, começaremos a ver nossa tradição confessional sob outra luz. Onde, à primeira vista, tínhamos constatado contradição, num aprofundamento, com atitude ecumênica, poderemos ver complementação. Foi desta maneira que luteranos, católicos, metodistas, reformados e anglicanos encontraram, em poucos anos, o que não tinham alcançado em 450. Como muito bem lembra D. Jaime Chemello, no seu pronunciamento, por ocasião da cerimônia de acolhida da Declaração, aqui no Brasil: Ela “é o resultado de um caminhar juntos na obediência da fé. Perguntamos juntos às Escrituras Sagradas e ouvimos juntos as respostas, perguntamos juntos à Tradição da fé, ouvimos juntos as respostas e chegamos a este consenso. O século XXI, com certeza, vai ver os cristãos […] praticando humildemente este exercício de perguntas e de escuta das Escrituras, sem considerar-se donos daquela Palavra da qual só Deus é dono”.
O diálogo bilateral entre Luteranos e Católicos começou logo após o término do Concílio Vaticano II. A Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação por graça e fé foi sendo elaborada aos poucos e antecipada por outros documentos. Entre eles podem ser citados os seguintes: “Relatório de Malta” sobre O Evangelho e a Igreja (1972), Justificação pela Fé (1983), Os Anátemas do século XVI são ainda atuais? (1986), e Igreja e Justificação (1994).
Qual, então, a novidade da Declaração Conjunta sobre a Justificação por Graça e Fé? Os documentos que a antecederam eram apenas estudos de teólogos, embora membros de uma Comissão oficial. A Declaração Conjunta é um ato oficial, assinada por autoridades das duas Igrejas e posteriormente das outras três. A partir de então passou a fazer parte do magistério das cinco Igrejas. Deve, por isso, ser ensinada nos cursos de teologia e passada para a catequese comum dos fiéis.
Antes de ser assinada em 31 de outubro de 1999, a Declaração Conjunta foi submetida ao parecer da suprema autoridade das duas Igrejas.
A Federação Luterana Mundial fez uma consulta às Igrejas membros. Das 86 que responderam (quase 90%), ou seja, 79 a aprovaram.
A reação da Igreja Católica foi dada em uma Nota elaborada pela Congregação da Doutrina da Fé e pelo Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos.
A Nota reconhece que a Declaração Conjunta, embora represente um notável progresso, na compreensão mútua e na aproximação das partes em diálogo, ainda não é expressão de um consenso que elimine todas as diferenças entre católicos e luteranos, na compreensão da justificação.
A título de exemplo apresento apenas duas diferenças:
a) A Igreja Católica tem dificuldade de aceitar a fórmula “ao mesmo tempo justo e pecador” (simul justus et peccator), assim como a entendem os Luteranos. Acha inaceitável afirmar que “o pecado ainda habita” na pessoa justificada.
b) Para a Igreja Católica é incompleto afirmar que o ser humano pode rejeitar a graça. A esta afirmação dever-se-ia acrescentar a possibilidade de colaborar com a graça, o que não permitiria afirmar que o humano pode tão somente receber (mere passive) a justificação.
Na Igreja Luterana, entre os que não acolheram a Declaração Conjunta encontram-se o Sínodo de Missouri e um grupo de professores de Teologia de diferentes Universidades.
O Sínodo de Missouri a considera “uma traição ao Evangelho”. Segundo este mesmo Sínodo, o texto é ambíguo e permite aos representantes do Papa assinarem-no sem mudar, retratar ou corrigir coisa alguma do que tem sido ensinado pela Igreja Católica Romana desde o Concílio de Trento, no século XVI.
O grupo de professores pede à Federação Luterana da Alemanha que rejeite o acordo. Segundo eles, além de não oferecer um consenso suficiente sobre certas questões, poderá prejudicar as relações da Igreja luterana com as outras Igrejas protestantes da Alemanha e da Europa.
As reservas formuladas, tanto pelo lado católico, como pelo lado luterano, levaram à redação de um Anexo que deverá ser lido juntamente com a Declaração Conjunta. Nele se precisa que a justificação produz uma renovação interior do crente. “Neste sentido, as pessoas justificadas não permanecem pecadoras”, mas continuam sob “a constante ameaça proveniente do poder do pecado”. Esclarece também que “o fato do agir da graça de Deus não exclui a ação humana” e que “o ser humano justificado tem a responsabilidade de não desperdiçar esta graça, mas de viver nela”.
Além do Anexo a Declaração Conjunta está acompanha de um Comunicado. Nele se afirma que, com relação aos questionamentos levantados por ambas as partes, o Anexo dá maiores esclarecimentos sobre o consenso alcançado na Declaração Conjunta. Afirma-se ainda que “ambos os parceiros de diálogo se comprometem a dar continuidade e aprofundamento ao estudo das bases bíblicas da doutrina da justificação” […] e que “luteranos e católicos vão continuar seus esforços de forma ecumênica para interpretar em seu testemunho comum a doutrina da justificação numa linguagem relevante para as pessoas de nosso tempo, levando em consideração as preocupações individuais e sociais da atualidade”.
Desde a assinatura da Declaração Conjunta, a Federação Luterana Mundial e o Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos têm empreendido juntos numerosas atividades para que o consenso alcançado se firme e se aprofunde.
Em 2000 a Federação Luterana Mundial fez um estudo sobre o significado contemporâneo da justificação, publicando-o com o título: “Justificação nos contextos mundiais”. Em 2002 promoveu um simpósio e em 2003 publicou seu relatório sob o título: “A Doutrina da Justificação: sua acolhida e significado hoje” Em 2001 a Federação Luterana Mundial e o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos e a Aliança Mundial das Igrejas Reformadas promoveram um simpósio sobre o significado das indulgências nos dias de hoje.
Encerro estas observações com as palavras de João Paulo II a uma delegação luterana da Noruega em novembro de 2002.
“Comprometemo-nos a continuar caminhando ao longo do itinerário da reconciliação. A Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação entre a Federação Luterana Mundial e a Igreja Católica, assinada em 1999, aplaina o caminho de um testemunho conjunto mais amplo e aproxima-nos um pouco mais da plena unidade visível, que constitui a meta do nosso diálogo. O Senhor nos ajude a valorizar aquilo que já foi alcançado até agora e nos confirme nos esforços em ordem a fazer com que eles se desenvolvam numa maior forma de cooperação. No início do novo milênio, o Senhor nos exorta a todos, seus seguidores,: “Duc in altum! Fazei-vos ao largo! “(Lc 5,4). Permaneçamos sempre abertos à obra surpreendente do Espírito Santo no meio de nós”.
Infelizmente este Documento, apesar de sua importância, permanece pouco conhecido dos fiéis das cinco Igrejas, incluindo padres e pastores. Nossos centros de formação teológica, nossas pastorais e grupos ecumênicos permanecem com a tarefa de estudá-lo e fazê-lo conhecido.
Dom Manoel João Francisco
Bispo de Cornélio Procópio
e presidente da Comissão Episcopal Pastoral
para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-religioso