Nesta Semana Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, o bispo da prelazia de Marajó (PA) e da Comissão Episcopal Pastoral para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Evaristo Pascoal Spengler, fala sobre a triste realidade de trabalhadores que são submetidos a situações análogas ao trabalho escravo no Brasil. Só em 2019, segundo dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Governo Federal (SIT), foram encontrados 1.054 trabalhadores nessa situação, um número que se mantém na média dos últimos 5 anos, abaixo da metade do número registrado entre 2010 e 2014.
Para marcar esta semana, a Comissão Pastoral da Terra e a Comissão Episcopal Pastoral para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) publicaram dia 24 de janeiro uma Nota para o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, marcado no dia 28 de janeiro, no link abaixo.
O presidente da Comissão Episcopal Pastoral para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da CNBB disse que esta realidade é um pecado que brada aos céus. “Não podemos nos acostumar com esse crime como sendo algo normal. Não é normal. Assim como no passado não foi normal a escravidão dos negros, o nazismo e toda forma de exploração humana. Qualquer pessoa que saiba que outra pessoa vive em uma situação degradante ela tem que denunciar. Isto é ser cristão”, disse. Veja, abaixo, a íntegra da entrevista concedida ao site da CNBB.
1 – Por que os números de trabalhadores submetidos a condições análogas ao trabalho escravo ainda são muito altos no Brasil?
A pergunta traz à tona uma realidade muito inviabilizada no Brasil. Muitos pensam que não existe trabalho escravo e que isto pertence ao passado, mas os números desta trágica chaga humana são ainda estarrecedores em nossos dias. Em 2019, foram encontradas 1.050 pessoas submetidas ao trabalho escravo no Brasil. Se voltarmos um pouco mais tempo, nos últimos sete anos, de 2013 a 2019, foram encontradas mais de 8.500 pessoas em situação de escravidão. Onde estão estas pessoas? Dois terços delas, 67% são encontradas nas áreas rurais, um terço na área urbana. Onde elas trabalham na área rural? Sobretudo na lavoura e na pecuária, mas também em menor número foram encontradas pessoas na fabricação de carvão vegetal, mineração, desmatamento… Já na cidade, se concentram sobretudo na construção civil e nas confecções.
E nós poderíamos perguntar: por que ainda hoje se perpetua este crime? Eu penso que a chave para entender a perpetuação deste crime é a vulnerabilidade das pessoas em situação extrema de pobreza e que não conhecem os seus direitos. Além disto, nós não podemos esquecer que convivemos com um modelo econômico que prioriza sempre mais o lucro. As pessoas não são vistas como seres humanos, para serem respeitadas e terem os seus direitos preservados. São vistas como máquinas que devem gerar lucros para outras pessoas. Por isto, tantas pessoas são escravizadas com tanta naturalidade. E até mesmo pessoas são traficadas: outro crime que brada aos céus.
O problema é que a maior parte do trabalho escravo ainda é invisível para a sociedade. Sem fiscalização, não há como flagrar esta prática de crime. Neste sentido, o trágico é que temos uma situação que se agrava a cada dia. Aponto aqui dois problemas muitos sérios: o primeiro, é a diminuição da fiscalização, dos cargos de fiscais criados por lei, criados no Brasil; Hoje temos um déficit de 40% e o mais grave é que prevê-se que o orçamento para a fiscalização do ano 2020 será cortado pela metade. Em 2018, foram R$ 71 milhões; em 2019, R$ 70 milhões e agora a previsão é que seja reduzido para míseros R$ 36 milhões. E a pergunta é: onde vamos chegar com tudo isto? E a Amazônia é que tem sido a mais prejudicada com estes cortes. Historicamente, mais da metade dos estabelecimentos fiscalizados eram na Amazônia. Em 2019, das 267 fiscalizações que ocorreram no país inteiro, apenas 78, ou seja 29%, foram na região Amazônica. Em segundo lugar, também houve uma quebra da parceria do governo federal com a sociedade civil. Havia um grande número de organizações da sociedade civil que acompanham, denunciavam e fiscalizavam o trabalho escravo. E hoje estas organizações são vistas como suspeitas, até como inimigas e até perseguidas.
2 – Quais os impactos desta prática na vida das pessoas que são submetidas à estas situações?
Os impactos são muito fortes na vida de uma pessoa que é submetida à esta prática similar ao trabalho escravo. Atinge até a sua alma. A pessoa tem a sensação de perda de tudo, perda em primeiro lugar da sua dignidade, perda da sua auto-estima e liberdade. Estas pessoas são vistas, muitas vezes, como um lixo. A grande maioria delas não conhece nada de seus direitos e convivem com situações de humilhação e degradação permanente da sua vida. As pessoas que a submetem ao trabalho escravo se aproveitam desta situação de miséria, vulnerabilidade e fragilidade das pessoas.
Há muitos que até já nascem em uma família submetida como escrava com os pais vivendo assim e eles continuam a trabalhar da mesma forma. Trabalham do amanhecer até à noite, comem comida sem qualidade, bem água contaminada, dormem em ambientes sujos e por vezes convivem até com animais. Há relatos de pessoas que armam suas redes e os porcos ficam passando embaixo. As pessoas não são registradas, não têm direitos trabalhistas, não podem estudar, não têm descanso e assistência médica. Há casos de pessoas que são vendidas para garimpos e fazendas. O modo de vida a que estas pessoas submetem é estarrecedor. Os danos psicológicos, certamente, vão ser insuperáveis. Muitos também ficam com sequelas físicas. Normalmente a saúde fica tão debilitada que estas pessoas acabam morrendo muito mais cedo.
3 – O que a Igreja no Brasil e os cristãos podem fazer para enfrentar a situação?
A Igreja Católica no Brasil vem de longa data denunciado profeticamente o trabalho escravo em todas as suas facetas e vê esta realidade como um pecado que brada aos céus. Porque degrada o ser humano que é um filho de Deus, imagem e semelhança do criador, que tem uma imagem a ser respeitada. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil tem se pronunciado, reiteradamente, contra este crime e pecado.
A própria Igreja Católica tem vários organismos, tem pastorais sociais e serviços que têm se posicionado, acompanhado vítimas e denunciado a situação. Eu posso citar aqui a Comissão Pastoral da Terra, um organismo ligado à Igreja Católica, que tem acompanhado tantas situações de trabalho escravo no Brasil e o próprio Conselho Indigenista Missionário (CIMI), nas áreas indígenas; a Pastoral do Migrante e várias outras instituições ligadas à Igreja que trabalham o enfrentamento da exploração sexual, do tráfico humano e do trabalho escravo, como por exemplo A Rede Um Grito pela Vida e mais recentemente temos a Comissão, criada pela CNBB, de enfrentamento ao tráfico humano que tem também como foco o enfrentamento ao trabalho escravo e à exploração sexual.
Mas, certamente, nos últimos tempos podemos citar que a maior denúncia foi feita pelo Sínodo para a Amazônia onde todos os bispos da região se reuniram com o Papa Francisco, em outubro de 2019, juntamente com cardeais da cúria romana e bispos de todo mundo. No documento final, há uma forte denúncia contra o trabalho escravo em toda panamazônia. Não podemos nos acostumar com esse crime como sendo algo normal. Não é normal. Assim como no passado não foi normal a escravidão dos negros, o nazismo, e toda forma de exploração humana. Qualquer pessoa que saiba que outra pessoa vive em uma situação degradante ela tem que denunciar. Isto é ser cristão. Muitos que denunciaram até já foram perseguidos e mortos. Mas o cristão não pode se acovardar. Nosso modelo e exemplo é Jesus Cristo, que deu a sua vida pelos irmãos.