Os caminhos de Francisco: as intuições que norteiam os nove anos de pontificado de Jorge Mário Bergoglio

O Papa Francisco completa, no próximo domingo, 13, nove anos de pontificado. Neste período, o pontífice conduziu processos e eventos que evidenciam um modo de ser e atuar da Igreja a partir de intuições já apresentadas no início de seu pontificado.

Enquanto a Igreja peregrina neste mundo rumo à Pátria definitiva, ela exerce a sua missão de evangelizar, ou seja, anunciar a Boa Nova de Jesus Cristo e seu plano de salvação. Em alusão a São Pedro, o primeiro Papa, a tradição fala dessa Igreja a caminho como uma barca que navega em alto mar. Mas, usando a figura franciscana e de tantos outros que trilham estradas num caminho de fé, a Igreja faz um peregrinar pelas estradas do mundo, conduzida pelo Vigário de Cristo.  

E o Papa Francisco tem conduzido a Igreja nesse caminho a partir de um itinerário apontado na exortação apostólica Evangelii Gaudium e materializado em passos concretos de sinodalidade. É o que pode ser percebido em processos atuais na Igreja em âmbito universal, como o Ano de São José, concluído em dezembro passado, o Ano Família Amoris Laetitia e o processo da XVI Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos. Na América Latina, a Igreja viveu um momento especial orientado pelo Papa e também marcado pela experiência sinodal: a Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe.  

Diretrizes para um estilo evangelizador 

Compreender e analisar esses eventos atuais da Igreja presume ter em mente o que está apontado como caminho eclesial na exortação apostólica Evangelii Gaudium, redigida pelo Papa Francisco a pedido dos participantes da XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, realizada em 2012, e conduzida por Bento XVI com o tema “A nova evangelização para a transmissão da fé cristã”. 

“Quero, com esta Exortação, dirigir-me aos fiéis cristãos a fim de os convidar para uma nova etapa evangelizadora marcada por esta alegria e indicar caminhos para o percurso da Igreja nos próximos anos”, anunciou o Papa Francisco logo no início do texto. 

Na exortação, Francisco propõe “algumas diretrizes que possam encorajar e orientar, em toda a Igreja, uma nova etapa evangelizadora, cheia de ardor e dinamismo”. A intenção ao abordar sete grandes temáticas foi “mostrar a relevante incidência prática destes assuntos na missão atual da Igreja”. Todos os temas elencados no quadro abaixo ajudam, como apontou o Papa, “a delinear um preciso estilo evangelizador”, o qual o pontífice convidou toda a Igreja a “assumir em qualquer atividade que se realize”. 

Um denominador comum 

As “intuições programáticas” do Papa Francisco expressas na Evangelii Gaudium são o “denominador comum” dos grandes processos que estão em curso neste momento na Igreja. A avaliação é do bispo auxiliar da arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro (RJ), dom Antonio Luiz Catelan Ferreira, que tem atuação como membro do Grupo de Peritos da Comissão Episcopal Pastoral para a Doutrina da Fé da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e do Instituto Nacional de Pastoral Padre Alberto Antoniazzi (Inapaz). 

Tais intuições, explica Catelan, “estão relacionadas com a Igreja que assume a saída missionária como programa pastoral fundamental, como opção fundamental que caracteriza o conjunto de todas as suas ações. Não que todas as ações tenham que ser diretamente de atividades missionárias, mas todas elas com motivação missionária como o próprio Papa faz a distinção entre missão paradigmática e missão programática”.

Missão Programática e Missão Paradigmática 
Missão Programática e Missão Paradigmática 

O denominador comum, dessa forma, está expresso no “estilo evangelizador” do Papa, a forma como a Igreja pretende caminhar. E esse modo de seguir na estrada da evangelização é o estilo sinodal. “Sinodalidade expressa ao mesmo tempo o ser da Igreja e o caminhar da Igreja”, segundo dom Catelan 

 “No seu conjunto, a palavra sinodalidade contribui para iluminar o conjunto desses eventos. A eclesiologia, a visão de Igreja, a compreensão de Igreja que está na base de todos esses grandes temas, e que esses grandes temas por sua vez ajudam a aprofundar e a ampliar, se conjugam na palavra sinodalidade”, explica. 

As motivações e intenções de cada evento 

Ligados pela ideia da sinodalidade e das intuições do Papa Francisco contidas na Evangelii Gaudium, esses processos e eventos têm, cada um, motivações e objetivos específicos 

O Ano de São José 

Convocado pelo Papa Francisco em 8 de dezembro de 2020, por ocasião dos 150 anos da proclamação de São José como Patrono da Igreja Universal, o Ano de São José quis “despertar na Igreja aquelas atitudes do cuidado, da presença silenciosa, paternal de São José”, segundo dom Catelan. Tudo isso foi detalhado na carta apostólica Patris Corde (Com coração de Pai).  

No texto, o Papa apresenta várias reflexões sobre a pessoa de São José e seu exemplo para os Povo de Deus. Em determinado trecho, Francisco destaca que “São José lembra-nos que todos aqueles que estão, aparentemente, escondidos ou em segundo plano, têm um protagonismo sem paralelo na história da salvação. A todos eles, dirijo uma palavra de reconhecimento e gratidão”. 

Ano Família Amoris Laetitia  

Na marca de cinco anos da exortação apostólica fruto de dois Sínodos sobre a família, Francisco quis relançar o documento, que há época, teve maior repercussão por aquilo que se aguardava dele por parte da opinião pública do que realmente pelo conteúdo apresentado.  

Dom Antonio Catelan explica que a intenção do Papa ao convocar o ano celebrativo, de março de 2021 a junho de 2022, é não perder de vista “que o cuidado pastoral da família oferece a perspectiva fundamental para que a ação evangelizadora não se fragmente na especialização, mas mantenha a visão de conjunto”. O individualismo, o consumismo, a polarização, observa, “terminam ameaçando profundamente a convivência familiar e a missão fundamental da família”. 

É nesse sentido que Francisco, após recolher as reflexões para o Sínodo, ofereceu a exortação apostólica Amoris Laetitia, na qual faz “uma proposta para as famílias cristãs, que as estimule a apreciar os dons do matrimônio e da família e a manter um amor forte e cheio de valores como a generosidade, o compromisso, a fidelidade e a paciência”. 

Passados cinco anos da publicação, o Ano “Família Amoris Laetitia” é uma iniciativa do Papa Francisco e pretende chegar a todas as famílias do mundo através de propostas de caráter espiritual, pastoral e cultural. É uma devolutiva para que a exortação seja aplicada a partir das bases, difundindo o conteúdo do documento, tornando as famílias protagonistas da pastoral familiar, anunciando que o sacramento do matrimônio é dádiva e tem o poder transformador do amor humano, conscientizando os jovens e, por fim, alargando o olhar e a ação da Pastoral Familiar.
 

Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe 

À luz e a partir da Conferência de Aparecida (2007) está a Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe. O Conselho Episcopal Latino Americano (Celam), passados mais de dez anos da conferência continental, consultou o Papa, que à época foi relator do encontro como arcebispo de Buenos Aires, sobre a possibilidade de realizar uma nova assembleia. Francisco, porém, acredita que o Documento de Aparecida “contém ainda muita força, está muito vigoroso e tem muitas propostas que ainda estão em curso de aplicação, de renovação na vida da Igreja”, partilha o bispo paranaense.  

Daí a ideia de não realizar uma nova conferência, mas convocar uma assembleia eclesial, a primeira na América Latina e no Caribe, de modo a “retomar as instituições fundamentais de Aparecida à luz do magistério de Papa Francisco e fazer avançar”.  

Assim, o Celam preparou materiais, plataformas e metodologias para que fossem realizadas as consultas durante todo o primeiro semestre até agosto de 2021, culminando com a assembleia no mês de novembro. Todo o povo de Deus foi convidado a participar do processo: leigos, religiosos e clérigos. 

“Essa Assembleia é um kairós, um momento propício para a escuta e discernimento que nos conecta de forma renovada com as orientações pastorais de Aparecida e com o magistério do Papa Francisco, e nos impele a abrir novos caminhos missionários para as periferias geográficas e existenciais e para lugares próprios de uma Igreja em saída”, afirmaram os participantes na Mensagem para o Povo da América Latina e do Caribe, divulgada ao final do encontro.

O Papa Francisco acompanhou e motivou a assembleia eclesial, reconhecendo-a como “uma nova expressão do rosto latino-americano e caribenho da nossa Igreja, em sintonia com o processo preparatório da XVI Assembleia geral do Sínodo dos Bispos”. O pontífice desejou que a Assembleia expressasse “o ‘desborde’ do amor criativo de seu Espírito, que nos impulsa a sair sem medo ao encontro dos outros, e que anima a Igreja para que, por um processo de conversão pastoral, seja cada vez mais evangelizadora e missionária”.

“Com grande gratidão e alegria reafirmamos nessa Assembleia Eclesial que o caminho para viver a conversão pastoral discernida em Aparecida é o da sinodalidade. A Igreja é sinodal em si mesma, a sinodalidade pertence à sua essência; portanto, não é uma moda passageira ou um lema vazio. Com a sinodalidade estamos aprendendo a caminhar juntos como a Igreja do Povo de Deus, envolvendo todos sem exclusão, na tarefa de comunicar a todos a alegria do Evangelho, como discípulos missionários em saída”
– Mensagem para o Povo da América Latina e do Caribe

Sínodo 2023

Com o tema “Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”, a XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos vai levar a Igreja a interrogar-se sobre o tema da sinodalidade considerado decisivo para a sua vida e a sua missão, um “caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milénio”, como pontuou o Papa Francisco. 

Esse itinerário se insere no sulco da “atualização” da Igreja proposta pelo Concílio Vaticano II e constitui um dom e uma tarefa, segundo o Papa. 

“Caminhando lado a lado e refletindo em conjunto sobre o caminho percorrido, com o que for experimentando, a Igreja poderá aprender quais são os processos que a podem ajudar a viver a comunhão, a realizar a participação e a abrir-se à missão. Com efeito, o nosso ‘caminhar juntos’ é o que mais implementa e manifesta a natureza da Igreja como Povo de Deus peregrino e missionário”.
– Documento Preparatório do Sínodo 

O que significam para a Igreja no Brasil  

O bispo de Rio Grande (RS) e presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e a Família da CNBB, dom Ricardo Hoepers, é um dos membros da equipe de animação do Sínodo. Recordando as iniciativas do Papa Francisco durante o pontificado, o bispo ressalta que todas essas perspectivas, “desde a Igreja doméstica, a vida cotidiana, até a perspectiva universal da Igreja, foram uma preparação para que nós pudéssemos assumir, neste tempo dramático que estamos vivendo, uma perspectiva mais aprofundada, mais firme, de quem realmente somos neste mundo, de reavivar o Concílio Vaticano II, reavivar a nossa fé, o nosso credo, a nossa Doutrina e o nosso testemunho”.  

Para ele, a Igreja sinodal tem a perspectiva de que todos os batizados, “no exercício da multiforme ordem da riqueza de seus carismas, tendo a Eucaristia como auge, como fonte, alimentados pelo próprio Cristo, vê tudo isso agora colocado à serviço da evangelização”.   

Dom Ricardo Hoepers | Foto: Luiz Lopes Jr/CNPF

Esse sentimento de responsabilidade e envolvimento no caminho sinodal do Papa Francisco também está presente nos cristãos leigos e leigas. A presidente do Conselho Nacional do Laicato do Brasil (CNLB), Sônia Gomes de Oliveira, partilha com alegria e entusiasmo o comprometimento do laicato nas iniciativas motivadas pelo Papa.  

“O Papa Francisco tem conseguido chegar aos corações de muitas pessoas, inclusive do laicato. E o laicato tem se empolgado muito nessa perspectiva de querer dar uma resposta, querer ser presença. A metodologia que o Papa Francisco tem usado é uma metodologia que motiva, que convoca, que nos propõe e que nos faz sentir parte. Não é uma metodologia impositiva, mas é uma metodologia que nos traz pela mão e nos conduz para esse processo do amor a Jesus Cristo, à causa de Jesus Cristo, ao amor ao outro, à família, ao Evangelho”.
– Sônia Gomes 

Os processos motivados pelo Papa Francisco têm feito, segundo Sônia, os leigos sentirem o ser batizado e vocacionado, que, “a partir da sua vocação, pode contribuir com a Igreja”. São pessoas que não estão somente para viver um serviço, mas são elas mesmas Igreja.

Dom Ricardo descreve a Sinodalidade proposta para o próximo sínodo como “a alegria de viver quem realmente somos, a nossa identidade num mundo que nos desafia, que nos interpela”. O papel como cristãos é “levar a este mundo não a nossa palavra, mas a Palavra de Cristo, de maneira harmônica, bela e, acima de tudo, com uma grande missão que Deus nos confia”.  

Sinodalidade e futuro  

Da perspectiva da sinodalidade, a Igreja não perde a sua essência missionária, uma vez que “a sinodalidade exprime com relação ao ser da Igreja, e exprime também com relação ao caminhar da Igreja, ao módulo da Igreja caminhar”, como explica dom Antonio Catelan. “Cada um a partir de sua vocação, dos ministérios, dos carismas recebidos toma parte na mesma e única missão que Cristo confiou à Igreja, de anunciar o Evangelho e fazer discípulos seus o mundo inteiro”.

DSC01449

“O modo da Igreja atuar, nas diferenças, uma igualdade fundamental: é a mesma e única missão, todos tomam parte nessa mesma e única missão. É por isso que a gente diz que a sinodalidade e exprime ao mesmo tempo o ser da Igreja e também o caminhar da Igreja”.
– Dom Antonio Catelan Ferreira 

A Igreja no Brasil já possui, segundo Catelan, experiências concretas de característica sinodal da comunhão e da partilha fraterna da missão, inclusive bastante solidificadas, como as assembleias diocesanas de pastoral que se concretizam num espaço do processo de planejamento participativo. Mas somos convidados a aprofundar e a ampliar essa sensibilidade sinodal, pondera: “sempre em conformidade com a natureza da Igreja, sempre sem criar oposição entre pastores e fiéis, sempre salientando essa dimensão fundamental de comunhão de todos os membros do povo de Deus”. 

Sônia Gomes observa nos processos dos caminhos de Francisco um novo florescer na vida Igreja, assim como o resultado das primeiras chuvas no seu sertão do Norte mineiro: “Quando você vê um tempo de chuva, você começa vendo a primavera, você começa vendo o florir, isso encanta, isso alegra as pessoas. É possível perceber que, a partir de Francisco, a nossa Igreja não será a mesma, mas um novo florescer, uma nova primavera, um tempo de alegria, um tempo de graça para a Igreja”.  

Sônia Gomes de Oliveira | Foto: CNBB

O que resta à Igreja nesta ocasião, é agir. Sônia reforça que não se pode ficar sentado esperando que a sinodalidade e as transformações aconteçam: “é preciso que a gente fortaleça todo esse querer do Papa Francisco”.  

“É bonito o que ele fala, o que ele faz, e nós precisamos aprender deixar de falar de Francisco e vivenciar as experiências de Francisco em nossa vida, em nosso tempo e sermos leigas e leigos capazes de viver a experiência da encarnação, de perceber as diversas Cafarnauns que têm ao nosso lado, seja no interno das nossas famílias, no interno do nosso trabalho, nas nossas periferias, as periferias existenciais, olhando as realidades de onde estamos, a realidade de nossas paróquias, as famílias que estão ao redor do território da nossa paróquia”.
– Sônia Gomes de Oliveira 

Que a experiência do sínodo seja efetiva nas nossas igrejas particulares, nas nossas dioceses, para que nós possamos realmente assumir o nosso papel como discípulos missionários, como batizados, participando e refletindo juntos sobre aquilo que nós entendemos ser Igreja.
– Dom Ricardo Hoepers

Fonte: CNBB
Fotos: CNBB, Vatican Media, Guilherme Cavali, POM

DESTAQUES

REDES

Pular para o conteúdo