Dom Genival Saraiva
Bispo emérito da Diocese de Palmares (PE)
O ontem e o hoje da história da humanidade tem registros luminosos e sombrios, auspiciosos e pavorosos, no seu respectivo contexto. Na leitura e compreensão dessa realidade, o ponto de partida é a constatação, o reconhecimento da interação entre a natureza e o ser humano, entre o tempo e o ser humano. A ciência e a religião, sob o seu próprio ângulo, identificam e explicam as mais variadas expressões da causalidade dessa coexistência, dessa convivência, harmoniosa ou traumática, ao longo da história. A convivência harmoniosa entre a natureza e o ser humano é explicada e testemunhada, fartamente, pela ciência. Da mesma forma, no olhar da religião, como se lê no Gênesis, livro histórico da Sagrada Escritura, essa coexistência/convivência tem “o dedo de Deus”, como, simbolicamente, Michelangelo expressou na pintura do afresco sobre a relação entre Deus e Adão. No teto da Capela Sistina, “o dedo de Deus está esticado ao máximo, mas o dedo de Adão está com as últimas falanges contraídas. O sentido da arte é explicar que Deus sempre está lá, mas a decisão de buscá-lo é do homem.” Ao se contemplar o mundo da natureza e o mundo das pessoas, na perspectiva do tempo, ontem e hoje, são inumeráveis as constatações de convergência e de ruturas dessa interação harmoniosa que vêm das origens. As ciências da natureza, entre as quais está a Física, que é o “estudo dos fenômenos naturais e do comportamento da matéria”, mostram que a regularidade é uma de suas leis. A Filosofia, por sua vez, sempre ensinou que “a natureza não dá saltos” porque há ritmo próprio para tudo acontecer. Um exemplo concreto confirma a máxima filosófica: a regeneração da vegetação nativa de áreas queimadas na Mata Atlântica, na Amazônia e no Cerrado “leva mais de três décadas”, conforme os especialistas. Os incêndios que estão acontecendo em diversos continentes são vistos como uma anormalidade causada pelas intervenções humanas, em alguns casos, de forma criminosa, um absurdo impensável. As secas prolongadas e as inundações, além das cotas registradas, historicamente, estão dizendo que a situação conhecida hoje é consequência das agressões humanas à natureza, no decurso de séculos.
Sob o aspecto social, sempre houve registro de conflito de interesse entre pessoas, grupos e nações, conforme o patamar de cada momento da história. Em que pese o nível mais elevado de conquistas, atualmente, em determinados campos da vida social, como educação e saúde, alguns casos se agravaram na sociedade contemporânea, chegando-se ao perigo da institucionalização da violência urbana e rural; registra-se essa realidade em ambientes de lazer, como no acesso aos estádios e nos próprios estádios, como também em locais de trabalho, como se constata em escolas, no trânsito e no meio rural. Na convivência social, houve no passado e persistem hoje casos de intransigência, de intolerância étnico-racial, religiosa, política. A esse respeito, escreve uma educadora: “Na Idade Média, as pessoas, por serem canhotas, algo tão pueril em nosso tempo, poderiam ir parar na fogueira, pois a mão esquerda era considerada a mão do demônio. Até a década de 60, algumas escolas brasileiras amarravam a mão esquerda de alunos canhotos a fim de que eles aprendessem a escrever com a mão direita, exemplo clássico de opressão e coerção. Hoje vemos que isso era um equívoco sem tamanho e eu espero que as pessoas enxerguem esse erro também com os gêneros.” Ao referir-se a sexo e gênero, ela esclarece: “sexo é biologia, fisiologia, é o seu órgão genital; gênero é a construção social, é identidade, como a pessoa se sente e o que ela é no mundo, e isso vai muito além do sexo biológico. É também extremamente errado falar em opção sexual. Ninguém opta por ser homossexual e sofrer as opressões que a sociedade impõe, as pessoas o são, simplesmente. É como ser destro ou canhoto” O magistério do Papa Francisco nessa matéria é muito clara: “homossexualidade não é crime, mas é pecado”. Esse é o ensinamento do Catecismo da Igreja Católica, n. 2358: “Um número considerável de homens e mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente radicadas. Esta propensão, objetivamente desordenada, constitui, para a maior parte deles, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á para com eles todo sinal de discriminação injusta. Estas pessoas são chamadas a realizar na sua vida a vontade de Deus e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício do Senhor as dificuldades que podem encontrar devido à sua condição.” Diante dessa constatação, disse o Papa: “Quem sou eu para julgar?”
No mundo político, ao longo dos tempos, o leitmotiv, o “motivo condutor” predominante entre os povos é a conquista do poder. Aristóteles, “em sua obra intitulada Política”, já se referia à tipologia das “formas de governo”: – monarquia, aristocracia, democracia e suas previsíveis “degenerações”. Na monarquia, em razão da hereditariedade, o poder se concentra numa pessoa, o monarca, o soberano e, por isso, com facilidade, pode tornar-se uma tirania. Na aristocracia, o poder é compartilhado por “um grupo de pessoas aptas a governar”; por ser uma “casta política”, uma oligarquia, quase sempre provém do “mesmo partido, classe ou família”, não se preocupa com o bem comum e, dessa maneira, pode cair no perigo de “legislar em causa própria”. A democracia é conhecida como “governo do povo, para o povo, com o povo, caracterizando-se como efetivo exercício da cidadania; o acesso ao governo acontece via processo eleitoral; a sua degeneração é a demagogia: “arte ou poder de conduzir o povo”, manipulando-o, portanto, segundo seus interesses. De conformidade com o calendário eleitoral, os eleitores se vão exercer sua cidadania, ao participar das eleições de 2024, para escolha de prefeitos e vereadores nos municípios brasileiros O debate, que é inerente à democracia, tem a finalidade de formar, de conscientizar os eleitores em vista de uma escolha criteriosa. Por certo, na maioria dos casos, os debates entre candidatos estão se caracterizando pela pobreza de ideias e pela falta de propostas consistentes para a formulação de políticas públicas de boa qualidade. A degeneração da democracia, como ensinava Aristóteles, também chega à população hoje mediante agressões verbais e físicas entre candidatos que, assim agindo, revelam a incapacidade de realizar debates em nível elevado, respeitoso, cívico. Outra degeneração é a força do poder econômico, através da compra de votos que continua ativa, com algumas apreensões de “dinheiro em espécie”, por parte das autoridades competentes. Candidato “ficha limpa”, como diz o povo, “já era”; mas, como a generalização é sempre problemática e podendo ser injusta, seguramente, há casos de candidatos e de administradores “ficha limpa”, embora sejam poucos, diante desse universo numeroso.
Que lições a história de ontem deixa pra quem tem hoje a responsabilidade de escrever a história para o presente e o amanhã, considerando a relação intrínseca entre o mundo da natureza e o ser humano, entre o tempo e o mundo das pessoas?