O limiar da velhice

Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal

No Livro I da República, Platão oferece uma reflexão sobre a velhice através do personagem Céfalo, um ancião que recebe Sócrates em sua casa. Embora o tema central da obra seja a justiça, o diálogo inicial faz uma discussão sobre o envelhecimento, destacando que o caráter e o modo como se vive determinam a experiência da velhice.

Céfalo, com as limitações físicas impostas pela idade, encontra prazer na conversação e na companhia de amigos. Sócrates, valorizando a sabedoria dos mais velhos, pergunta a Céfalo sobre o “limiar da velhice”. Em resposta, Céfalo adota uma visão realista e estoica do envelhecimento, destacando a libertação das paixões como uma de suas principais vantagens. Ao citar Sófocles, ele reflete sobre a serenidade que vem com a diminuição dos desejos, quando as paixões da juventude já não atormentam o espírito, semelhante a um escravo que se liberta de um senhor colérico e truculento, alcançando um repouso que somente a velhice pode proporcionar.

Essa ideia ressoa no poema “Elogio da Sombra”, de Jorge Luis Borges, que descreve a velhice como um tempo de felicidade, onde “o animal morreu ou quase morreu” e restam “o homem e sua alma”. Borges destaca a serenidade e introspecção que acompanham essa fase da vida, semelhante ao prazer que Céfalo encontra na quietude e na reflexão.

Céfalo também refuta a ideia de que a velhice é intrinsecamente uma fonte de sofrimento. Ele observa que muitos idosos se queixam das perdas e dificuldades da idade, mas argumenta que esses lamentos decorrem mais do caráter das pessoas do que da velhice em si. Para aqueles com bom caráter e que viveram desde a juventude com equilíbrio, a velhice pode ser uma época de paz e satisfação, em vez de um fardo. Platão sugere que a forma como vivemos na juventude prepara o terreno para nossa experiência na velhice.

Essa visão é refletida no poema de Cecília Meireles, “A velhice pede desculpas”, que retrata a idade avançada como um estado de resignação e aceitação, onde as marcas do tempo são vistas como parte inevitável da vida, e não como tragédias. A ideia de que a velhice é uma continuação natural da vida, e não um evento catastrófico, é comum tanto em Platão quanto em Meireles.

Além disso, Platão aborda a relação entre velhice e riqueza. Sócrates questiona se a felicidade de Céfalo na velhice está relacionada à sua riqueza. Céfalo reconhece que o dinheiro traz algumas compensações, mas enfatiza que não é a fonte da verdadeira paz. Para ele, a riqueza é útil principalmente para evitar injustiças e cumprir obrigações, mas não pode proporcionar paz a um homem mau. A verdadeira tranquilidade na velhice é alcançada através de uma existência pautada com justiça e equilíbrio, e não pelo acúmulo de bens materiais.

Essa reflexão sugere que os bens materiais são apenas instrumentos que podem facilitar ou dificultar uma vida plena, mas não são determinantes para a felicidade na idade avançada. O caráter, e não a fortuna, define a qualidade da velhice. As reflexões de Platão no Livro I da República oferecem uma visão profunda sobre como o caráter e as escolhas feitas ao longo da vida moldam a experiência do envelhecimento. A libertação das paixões, a aceitação serena do tempo e o uso judicioso da riqueza são apresentados como pilares que podem tornar a velhice um período de paz e realização. Embora a velhice traga desafios, ela também pode ser um tempo de profunda sabedoria e contentamento.

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