Misericórdia, conceito fundamental do Evangelho e chave da vida cristã

Dom Jaime Vieira Rocha 
Arcebispo de Natal (RN)

Misericordias Domini in aeternum cantabo

No próximo domingo, o 2º da Páscoa, a Igreja celebra a Festa da Divina Misericórdia. Convido a todos, especialmente neste tempo, a refletir sobre a Misericórdia Divina, tema central no Pontificado de Papa Francisco, desde os primeiros dias de sua eleição, passando pela experiência de graça que foi o Jubileu Extraordinário em 2015/2016. O tempo Pascal que estamos vivendo é tempo propício para celebrar a Misericórdia infinita de nosso Deus, manifestada em Jesus Cristo, Crucificado e Ressuscitado, doador do Espírito Santo, que nos justifica, santifica, e glorifica. A Páscoa do Senhor, é evento de misericórdia para toda a humanidade. 

A Misericórdia é “o conceito fundamental do Evangelho e chave da vida cristã”, como afirmou o cardeal Walter Kasper em livro sobre o tema. A misericórdia divina constitui o núcleo e a suma da revelação bíblica sobre Deus. Ela não é um sentimento divino qualquer, ou uma atenção divina extraordinária. É o próprio de Deus. Deus é misericórdia. Em todo o Antigo Testamento a mensagem da misericórdia está presente. O Deus do Antigo Testamento é apresentado, do Êxodo aos Salmos, como “misericordioso e piedoso, lento na ira e rico de graça” (Sl 145,8; cf. 86,15; 103,8; 116,5; e ainda Jn 4,2). Jesus mesmo assume essa revelação e dá um salto a mais: Deus é pai misericordioso. E segundo o Evangelho de Lucas a misericórdia é a perfeição da essência de Deus. Deus não condena, mas perdoa, dá e doa numa medida boa, calcada, sacudida e transbordante; ela é sem medida. 

O tema da misericórdia foi muitas vezes deixado de lado na reflexão teológica. Muito se falou dos atributos divinos provenientes de uma reflexão metafisica de Deus, isto é, numa reflexão filosófica, às vezes sem ligação com a revelação bíblica. Segundo o cardeal Kasper, as grandes obras de dogmática, tradicionais e recentes, tratavam a misericórdia como uma das propriedades de Deus, e só brevemente, depois dos outros atributos divinos. Mas, segundo o mesmo autor, o tema da misericórdia divina é um tema fundamental para o século XXI. E é possível reconhecer que foi no século XX, marcado por tantos acontecimentos trágicos (duas grandes guerras mundiais, holocausto, bomba atômica etc.) que a mensagem da misericórdia ressoou novamente na reflexão da Igreja. De João XXIII a João Paulo II, do Concilio Vaticano II à Evangelii gaudium e Misericordiae vultus de Papa Francisco, de Santa Faustina à Santa Teresa de Calcutá, já não é mais possível falar de Deus sem entender que Ele é misericórdia, rico em misericórdia, como afirma São Paulo na carta aos Efésios (cf. Ef 2,4). Também nestes últimos acontecimentos, de guerras e desrespeito à dignidade humana, a mensagem sobre a Misericórdia Divina é atual e urgente. 

Mas, falar de misericórdia não significa que Deus não exija de nós resposta, responsabilidade humana. Pelo contrário, é o amor misericordioso de Deus que empenha o homem. Deus quer que todos sejam salvos. Mas, a salvação consiste em viver na intimidade com Ele e no seguimento a Jesus, através do Evangelho. Porém, o seguimento a Jesus é alegria, é paz, é festa. Para acontecer não é o homem que produz, não é o resultado das obras do homem, é pura graça, é amor que transforma, que faz o homem nova criatura. E mais, a Igreja, comunidade de homens e mulheres salvos pela misericórdia divina, é a grande portadora da mensagem de misericórdia. Ela é a grande força da Igreja no século XXI. É a única que pode nos iluminar para que saibamos qual é a verdadeira imagem de Deus. 

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