Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal (RN)
Nesse novo milênio, a humanidade encontra-se em um ponto de inflexão, confrontada com avanços tecnológicos e científicos que desafiam nossas concepções mais fundamentais sobre o significado de ser humano. Este dilema, profundamente explorado por Jean-Claude Guillebaud em “O Princípio da Humanidade”, ressalta a desconstrução do conceito de humanidade do homem em meio ao avanço da tecnociência, recolocando o desafio de definir o que caracteriza o humano e redefinir os conceitos de humanidade e dignidade humana em uma época de incertezas.
O nazismo, ao desumanizar pessoas, transformando-as em objetos ou animais, e outras atrocidades semelhantes ocorridas no século passado e neste milênio reacenderam a luta contra as tiranias e fortaleceram a consciência sobre a importância dos direitos humanos, incitando um compromisso de não aceitar crimes que violam a dignidade humana. No entanto, a ciência contemporânea, por meio da genética, das ciências cognitivas e da física molecular, levanta questionamentos profundos sobre as fronteiras entre humanos, animais e máquinas, desafiando as definições tradicionais de “humanidade”. Será que ainda sabemos definir o homem, distingui-lo do animal, da máquina, da coisa? Desde a biologia até as neurociências e as pesquisas cognitivas, o homem está sendo questionado! Esse cenário evidencia como o progresso científico põe em dúvida convicções longamente sustentadas, questionando a distinção fundamental entre o humano e o não humano.
Apesar de o período pós-guerra ter contribuído para o reconhecimento da dignidade humana e para a implementação dos direitos humanos, a definição de “humanidade” do homem está se tornando cada vez mais obscura. A tecnociência, ao mesmo tempo em que promete liberdade e bem-estar, questiona a distinção entre humanos, animais e máquinas, colocando em risco o conceito de dignidade humana. As lembranças dos horrores do século XX, especialmente do Holocausto, servem como lembretes sombrios do que acontece quando a humanidade de um indivíduo é negada ou reduzida.
Guillebaud identifica três principais revoluções — econômica, informática e genética — que estão redefinindo profundamente a sociedade e, por extensão, o próprio conceito de “humanidade” do homem. A globalização, o avanço da computação e os progressos na genética não apenas remodelam o mundo exterior, mas também desafiam nossas noções internas de identidade e autoconsciência. Essas revoluções, ao convergirem, criam um cenário em que o indivíduo pode ser visto mais como uma entidade biogenética ou uma extensão da tecnologia do que como um ser humano com dignidade intrínseca.
A pesquisa e a inovação na fronteira da ciência sugerem um futuro em que a linha entre humano e máquina, humano e animal, está cada vez mais borrada. Desde a clonagem de Dolly até o desenvolvimento da inteligência artificial, a tecnociência indica um futuro em que a identidade humana pode ser replicada, modificada ou mesmo superada. Esse panorama não só desafia a singularidade da experiência humana, mas também questiona a base sobre a qual os direitos humanos e a dignidade da pessoa humana são atribuídos e protegidos.
A resposta a este desafio não é simples. A dignidade humana, tradicionalmente baseada na noção de uma qualidade intrínseca, inalienável e universal atribuída a todos os seres humanos, independentemente de suas capacidades, posição social ou outras características, necessita ser reavaliada em um mundo em constante evolução. Isso pode envolver um reconhecimento mais amplo da interconexão entre humanos, tecnologia e natureza, e um compromisso renovado com os valores fundamentais que promovem respeito, compaixão e solidariedade.
Redefinir a humanidade do homem e sua dignidade diante dos avanços tecno-científicos exige um diálogo profundo entre ciência, filosofia, ética, teologia e política, reconhecendo que, apesar dos desafios, a dignidade humana continua sendo a bússola moral essencial para o nosso futuro coletivo. A reavaliação do conceito de humanidade do homem é uma necessidade urgente para garantir a dignidade da pessoa humana, os direitos e a sobrevivência da espécie humana em um futuro incerto. Reconhecer a complexidade e a singularidade da condição humana, mesmo diante das ameaças de desumanização, é o primeiro passo para assegurar que a tecnologia sirva à humanidade, e não o contrário. À medida que navegamos por essas águas inexploradas, devemos ancorar nossos esforços na promoção dos direitos humanos e na proteção da dignidade de cada pessoa.