A música litúrgica é vista pela Igreja com muito zelo, como nobre e respeitável arte que serve para “o esplendor do culto divino e para uma mais intensa vida espiritual dos fiéis”, como ensinou o Papa Pio XII na carta encíclica Musicae Sacrae disciplina. Às vésperas do dia dedicado à Música, 21 de junho, o assessor do Setor Música Litúrgica da Comissão Episcopal Pastoral para a Liturgia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), irmão Fernando Benedito Vieira, destaca três atitudes para melhor servir na música litúrgica a partir de ensinamentos do Papa emérito Bento XVI.
O religioso jesuíta busca indicações do livro “O Espírito da Música”, de autoria do Papa Bento XVI, o qual tem uma relação próxima com a música. De modo particular, esta relação de Joseph Ratzinger com a música remete ao irmão mais velho, o padre Georg Ratzinger, conhecido por seu trabalho como maestro do Regensburger Domspatzen, o coro da catedral de Regensburg, na Alemanha.
Três atitudes
O livro do Papa emérito Bento XVI aborda a relação entre a música e a liturgia, sobre o lugar que a primeira ocupa na segunda, bem como sobre os princípios e os fins da música litúrgica verdadeiramente apropriada ao serviço e ao louvor a Deus. Das tantas reflexões presentes na publicação, irmão Fernando Vieira destaca três que podem ser úteis para o músico que atua na Pastoral Litúrgica: Tipos de música, moderação e individualismo.
O ponto de partida para as reflexões é a Constituição sobre a Liturgia presente no Catecismo da Igreja Católica, em seu cânon 1090:
“Pela Liturgia da terra participamos, saboreando-a já, na Liturgia celeste celebrada na cidade santa de Jerusalém, para a qual como peregrinos nos dirigimos […]; por meio dela cantamos ao Senhor um hino de glória”.
Tipos de música
A primeira indicação é sobre os tipos de música próprios para a Liturgia:
“Existe música para agitação, que conduz o homem ao serviço de diferentes objetivos coletivos. Existe uma música sensual, que aumenta o apetite erótico ou atrai na direção de outros prazeres sensuais. Existe música de pura distração, que nada tem a dizer, que se contenta puramente em romper um silêncio que se tornou pesado demais. Existe música racionalista, cuja melodia só serve às construções racionais, sem falar realmente nem ao espírito, nem aos sentidos. Agora, certos cantos na liturgia podemos inserir numa categoria de cantos sem alma: são cantos feitos hoje na atualidade sem conhecimento de música. Então, a música adequada para a liturgia ela tem uma outra síntese, mais vasta e de maior dimensão: síntese de espírito, intuição e melodia que fale aos sentidos”.
Segundo ensina Bento XVI, toda música litúrgica “supõe, necessariamente, respeito profundo, disposição a receber, humildade pronta a servir e a participação naquilo que já se fez de grande”. Irmão Fernando fala das duas balizas dispostas pela Igreja para os músicos:
- A primeira direciona a música litúrgica para responder, interiormente, naquilo que a constitui, ou seja, “as exigências dos grandes textos litúrgicos e textos bíblicos”, como o Kyrie, o glória… “Isso não quer dizer que ela deva se reduzir, necessariamente, a uma música ditada somente pelo texto. Mas a orientação interna desses textos mostram o caminho da sua própria expressão”, explica.
- A segunda baliza é a referência ao canto gregoriano, “que não significa que toda a música da Igreja deva ser uma imitação desse repertório. São referências, critérios de orientação. Quem quiser aprender a fazer música para a liturgia, deve orientar-se nas fontes, segundo irmão Fernando.
No livro de Bento XVI, há também referências de autores como Harnoncourt, que escreveu: “Estou convencido de que há também uma música que convém particularmente, ou não convém de todo, ao encontro com o mistério da fé”. Para Bento XVI, uma música que pretende estar a serviço da liturgia cristã “deve, com efeito, estar conforme o Logos, ou seja, concretamente: ela deve se situar numa relação de compreensão da palavra na qual se exprime o Logos”.
Moderação
Sobre a moderação, a reflexão parte do tratado da oração do Senhor, de São Cipriano:
“Haja ordem na palavra e na súplica dos que oram, tranquilos e respeitosos. Pensemos que estamos na presença de Deus. Que a posição de nossos corpos e a moderação das vozes Lhe sejam agradáveis. Se é próprio do irreverente soltar a voz em altos brados, convém ao respeitoso a modéstia. […] Quando nos reunimos com os irmãos e celebramos com o sacerdote de Deus o Sacrifício Divino, […] não devemos lançar a esmo nossas preces com palavras desordenadas, nem atirar a Deus pedidos de forma tumultuada; tudo isso deve ser apresentado com humildade, pois Deus ouve, não as palavras, mas os corações. Com efeito, não se pode recorrer com gritos Àquele que vê os pensamentos […]”.
Assim, na missa, os instrumentos não fazem parte de um show. O Papa Pio X reforçava sobre “uma maior sobriedade no acompanhamento dos instrumentos”. Desta forma, “deve-se submeter a música litúrgica inteiramente ao serviço da Palavra litúrgica e ao serviço do louvor. A música sacra não devia ser mais uma ocasião de exibição musical na liturgia, mas ser ela mesma litúrgica, ou seja, unir-se ao coro dos anjos e santos”.
Missas pelos meios de comunicação
Do mesmo modo que a moderação, há também o exemplo. Bento XVI também lembrou em sua obra das celebrações transmitidas pelos meios de comunicação, tão presentes neste tempo de pandemia, com as missas acompanhadas pelos fiéis à distância. “A Liturgia, nesses locais que são transmitidos, deve ser uma liturgia exemplar para o mundo. Vocês sabem que, com a televisão, o rádio e os meios de comunicação modernos, hoje em dia, em todas as partes do mundo, diversas pessoas acompanham a liturgia. Elas aprendem aqui, entre outras coisas, o que é a liturgia e o modo como é preciso celebrá-la”.
“Por isso é tão importante, não apenas que quem está presidindo, quem está cantando, quem está ajudando ensine como bem celebrar a liturgia, a partir de critérios, mas também que o grupo de canto seja um exemplo do modo como é preciso trazer a beleza do canto para o louvor a Deus”, sublinha irmão Fernando.
Individualismo
Bento XVI também discorre sobre o individualismo, frequentemente conhecido como “estrelismo”. “As grandes obras da música de Igreja só podem ser executadas a título gratuito e sem maiores pretensões”, ensina o Papa Emérito. Aí retorna-se ao que foi destacado anteriormente, de que “toda música litúrgica supõe, necessariamente, respeito profundo, disposição a receber, humildade pronta a servir e a participação naquilo que já se fez de grande”.
Diante da tentação do individualismo, o músico deve lembrar do sentido de comunidade: assembleia e reunião.
“Essas duas expressões visam, incontestavelmente, dois conteúdos importantes: elas exprimem, por um lado, que aqueles que participam da celebração litúrgica não são indivíduos sem relação entre si, mas que o evento litúrgico os reúne em representação concreta do povo de Deus. Então, essas duas palavras significam também, por outro lado, que enquanto povo de Deus reunidos, são co-portadores do evento litúrgico que vem do Senhor“.
“Então a gente deve resistir com muita insistência à tentação muito comum nos dias de hoje de hipertrofiar a comunidade”, ressalta irmão Fernando. O Catecismo da Igreja Católica ensina que os membros reunidos só formam uma unidade em virtude da comunhão do Espírito Santo, “eles não formam essa unidade por si mesmos, como uma entidade sociologicamente fechada”.