Pesquisa da CNBB revela que Igreja no Brasil tem exército de caridade dedicado a ações sociais

Pacaraima (RR), dia 14 de agosto de 2018. Cerca de 2,1 mil pessoas se juntam nas proximidades da paróquia Sagrado Coração de Jesus, na esperança da primeira refeição do dia. São centenas de famílias venezuelanas que fugiram de seu país em busca de dignidade, com a fé e a esperança junto das bagagens. Quem comanda a equipe em torno do “café fraterno” é o padre Jesus Lopez Fernandez de Bobadilla, que além do fornecimento de alimentação há mais de um ano, conduz outras iniciativas de acolhimento e acompanhamento para com os venezuelanos, um “povo tão maltratado”, como caracteriza. A iniciativa recebe o apoio da diocese de Roraima (RR).

No Sul do país, às quartas-feiras, desde 2013, o compromisso é ir para a cozinha e levar de Kombi um jantar para a população de rua da cidade portuária de Itajaí (SC). A chamada “Kombi da sopa” foi idealizada pelo diácono Juarez Carlos Blanger, que atua na paróquia São Vicente de Paulo, pertencente à arquidiocese de Florianópolis (SC). São cinco cozinheiras que produzem 65 marmitas entregues em viadutos e outros pontos onde se encontram pessoas em situação de rua. Roupas e cobertores também são distribuídos nesta ação que está estruturada atualmente na Associação Maria Mãe de Jesus.

Dioceses, paróquias, associações, novas comunidades e institutos são exemplos de um exército de caridade que atua no Brasil. Junto com as 21 Pastorais Sociais estruturadas nacionalmente, as Obras Sociais da Igreja chegam à somatória de 499,9 milhões de atendimentos a cerca de 39,2 milhões de pessoas e aproximadamente 11,8 milhões de famílias.

Silvio Sant’ana
foi o responsável por organizar os dados no relatório

Os dados são da pesquisa sobre a Ação Social da Igreja no Brasil encomendada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) à Fundação Grupo Esquel Brasil (FGEB), cujo presidente, o cientista social Silvio Sant’Ana, foi o responsável por organizar os dados no relatório.  A pesquisa se desenvolveu no campo ocupado por duas instâncias institucionais muito próprias no contexto eclesial: as “Obras Sociais” e as “Pastorais Sociais”.

De acordo com o responsável pela pesquisa, Silvio Sant’ana, obras sociais são organizações quase sempre com existência legal (pessoas jurídicas de direito privado) e, geralmente, vinculada a Institutos e Ordens Religiosas, ou à diocese, com pessoal especializado, dispondo de instalações físicas, recebendo pessoas e as demandas de interessados no atendimento. “É, de certa forma um núcleo ‘receptivo’, um local onde é ofertado à população um atendimento ou um serviço”, descreve.

Já as Pastorais Sociais, são organizações compostas majoritariamente por voluntários, nem sempre organizadas como pessoas jurídicas, que operam por “’busca ativa’ de pessoas ou segmentos sociais em situação de vulnerabilidade e risco”. O pesquisador ressalta a característica de atendimento voltado a grupos ou temáticas sociais especiais, “que requerem atenção específica devido as suas características e situações vivenciais”.

Em sua pesquisa, Silvio relata o sentido de ação social tomado pelos católicos no Brasil que se envolvem nas atividades de ajuda aos mais necessitados, os pobres. O termo, neste contexto, significa de forma mais elementar a oferta de comida e roupa. “É atitude louvável do ‘bom samaritano’”, resume o pesquisador. São exemplos disso as ações de padre Jesus, em Pacaraima, e do diácono Juarez, em Itajaí.

A pesquisa – A amostra da pesquisa é de 26 Igrejas Particulares no Brasil, entre dioceses e arquidioceses, e admite um erro amostral de até 5% para mais ou para menos. Os dados referem-se ao ano de realização da investigação, 2014. Foi decidido não incluir na pesquisa as organizações dedicadas a assistência de Saúde (hospitais) e as de Educação (escolas católicas). “De um lado não existem dados confiáveis e disponíveis sobre o atendimento realizado por estas instituições. De outro, as dimensões destes trabalhos são gigantescas e seguramente distorceriam os resultados quando mesclados com iniciativas menores”, explica Sant’Ana. No entanto, as Obras Sociais criadas e patrocinadas por hospitais e escolas católicos fazem parte da amostra.

É considerado o número de 10.760 paróquias, dado disponível de 2010, para encontrar mais de 32 mil iniciativas estruturadas, uma vez que, a partir de uma outra pesquisa, feita pelo Centro de Estatísticas Religiosas e Investigações Sociais (CERIS), em 1999, que apontava pelo menos três iniciativas de ação social em cada paróquia do Brasil. A este número, somam-se as associações de obras sociais dispostas em cada diocese e as iniciativas dos mais de 500 institutos e ordens religiosas e de vida apostólica distribuídos em 1026 sedes em todo o país.

Dos 499,9 milhões de atendimentos da Igreja, 393,5 milhões correspondem às Obras Sociais. Este número corresponde a quase 30,3 milhões de pessoas atendidas, número equivalente a 88% do número total de pobres do país.

As Pastorais Sociais realizaram, em 2014, 106,4 milhões de atendimentos. São 8,9 milhões de pessoas atendidas e 2,7 milhões de famílias. A cobertura nas dioceses do Brasil tem destaque pela presença da Pastoral da Criança na totalidade das Igrejas Particulares do Brasil. Em seguida, somente a Pastoral Carcerária e a Pastoral da Pessoa Idosa têm cobertura em mais da metade das dioceses brasileiras. No menor grau de capilaridade, as pastorais do Surdo, da Mobilidade Humana, da Ecologia, Afro-Brasileira e dos Direitos Humanos estão em 9% das dioceses, cada, o que significa 25 localidades, praticamente coincidindo com o número de cidades capitais.

As áreas do atendimento – A pesquisa encomendada pela CNBB também faz uma classificação das pessoas atendidas nas obras e pastorais sociais a partir de funções sociais, assim divididas: saúde, assistência social (saúde + educação + proteção social básica), desenvolvimento e defesa de direitos e outros. Os números, segundo o pesquisador, devem ser entendidos considerando que a abordagem integral da pessoa “faz com que as estatísticas não consigam explicitar adequadamente a riqueza e diversidade da atividade realizada”. Isso pode ser exemplificado quando se considera o atendimento de uma Pastoral Social cujo trabalho é focado para atendimento de um grupo específico, mas a pessoa é assumida em seu contexto familiar e social.

Na ação da Igreja, há forte concentração nos serviços de atendimento na área da saúde, seguidos da assistência social. No âmbito das Obras Sociais, refere se a 40,9% e 46,7% dos atendimentos, respectivamente, sendo que a Assistência Social engloba, em conjunto, os serviços de saúde, educação e proteção social básica. As Pastorais Sociais destacam-se na defesa de direitos ou promoção de iniciativas de melhoria de renda ou emprego. São 3,1 milhões de pessoas atendidas, o que corresponde a 35% dos atendimentos. Assim como nas obras sociais, contudo, o atendimento na área da saúde é o mais expressivo: são 5,5 milhões de atendidos, 62,3% do total de pessoas a quem se destinam ações das pastorais.

Segundo a pesquisa, parte significativa do esforço na área de saúde está associada ao atendimento materno infantil, mas também são contemplados segmentos populacionais como pessoas soropositivas, dependentes químicos (de drogas permitidas ou não), pessoas ou grupos vítimas de violência e abusos de toda ordem, portadores de necessidades especiais.

Quem é quem no atendimento – No recorte por tipo de público atendido pela ação social da Igreja, o destaque vai para as crianças e jovens, que concentram 18% do número de atendidos. A Pastoral da Criança, por exemplo, atende mensalmente 1,2 milhão de crianças. Os idosos são o segundo grupo mais expressivo no atendimento, principalmente se o recorte for as Obras Sociais, onde se encontra um número até maior do que o de crianças e jovens: são 2,6 milhões de pessoas na terceira idade atendidas.

A população em situação de rua, a exemplo dos que recebem atenção do grupo da “Kombi da sopa”, em Santa Catarina, refere-se a 2,7% do total de atendidos por obras e pastorais sociais da Igreja. De acordo com a pesquisa, o número de atendidos, apesar de parecer pequeno dentro do universo estimado, representa quase metade dos “moradores de rua” recenseados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nas capitais e áreas metropolitanas.

Silvio Sant’Ana, coordenador da pesquisa sobre Ação Social da Igreja no Brasil. Foto: Assessoria de Imprensa da CNBB

ENTREVISTA: “Eu não tinha a dimensão desse trabalho no país todo”

Para saber das impressões do pesquisador que esteve à frente dessa investigação sobre o trabalho social da Igreja no Brasil, Silvio Sant’Ana foi convidado para uma entrevista, da qual são extraídos os principais trechos:

Qual o sentimento ao ver as experiências e ao compilar os dados colhidos Brasil afora?

Eu sabia que a Igreja tinha uma série de obras sociais em todos os lugares, tem coisas muito lindas que a gente vê na rádio e na televisão ou visitando as comunidades. Mas eu não tinha a dimensão desse trabalho no país todo e da quantidade de esforço que é colocado para realizar isso daí. Normalmente você fica pensando que uma paróquia ou uma diocese tem lá uma obra social, uma coisa aqui, ali. Ao não ter somado o conjunto de tudo que está acontecendo, nós temos uma ideia muito fraccionada, muito quebrada do que existe, mas quando você começa a somar isso tudo, vê que realmente é uma coisa impressionante.

Sinceramente, não tem nada, do ponto de vista das outras instituições dentro do país, que chegue nem perto desse esforço tão grande. E outra coisa que fica mais impressionante ainda, que também a gente não se dá conta, é que isso não é instantâneo. Isso é todo dia, ano após ano. Não é como se faz manifestação e coloca 20 mil pessoas na rua. A coisa é permanente. Foi outra dimensão que eu não conseguia formular. Quantas coisas permanentes a gente pode dizer que existem no país com essa capacidade, com essa frequência? Aí tem um detalhe que também saiu da pesquisa é que a Igreja não tem noção do que está fazendo, do tamanho do trabalho que vem sedo feito. Isso ficou muito claro até com as pessoas com as quais nós trabalhamos e entrevistamos e conseguimos dados: elas mesmas se surpreendiam.

Então, primeiro, o tamanho é impressionante, segundo a permanência, ou seja, a continuidade histórica – muda uma coisa ou outra, mas tem uma permanência. E a terceira coisa é isso, que a própria Igreja, os próprios católicos, mesmo envolvidos não conseguem se dar conta da importância.

Podemos dizer que todo este envolvimento tem uma raiz evangélica e que também reflete a ausência do Estado na vida da população?

Eu, sinceramente, pelo que eu senti dentro da pesquisa, a motivação religiosa, de fé, é a principal coisa. Não é porque o Estado não faz, ou não está presente. É porque as pessoas são movidas a realizar o mandato da sua fé. E a gente pode comprovar isso, no seguinte: quando o Estado está presente, continua a funcionar. Se fosse substituição, complementariedade, quando o Estado chegasse, instalasse seus equipamentos, suas obras, etc. você pararia, como é o caso da Pastoral da Criança: no fundo, os líderes da Pastoral da Criança são agentes comunitários de saúde. Na época que começou, não existiam agentes comunitários de saúde, então se podia dizer “a Pastoral existe porque não tem o Estado…”

Muitas pessoas fazem as coisas que estão fazendo, não é porque o Estado A ou B, não. É porque elas querem fazer. Elas veem e se sentem impelidas a atuar. O senhor fala de as pessoas não terem dimensão do que é feito na área social. O que seria interessante para potencializar esse trabalho e garantir melhor organização no sentido de registrar as ações?

É uma questão cultural. Hoje, parece que as coisas só existem se aparecerem na foto ou no Facebook. O mundo real é o que está nas mídias. A nossa cultura está caminhando de um jeito que tudo tem que ser mostrado, tudo é visual.  A gente, por tradição religiosa, antiga, chega a dizer assim “você faça caridade, mas que a tua mão esquerda não saiba o que fez a direita fez”. Então a gente tem, por tradição católica, uma ideia de que não devemos ficar divulgando o que a gente está fazendo, senão a gente termina ficando igual aos fariseus. Isso gerou uma atitude em geral dentro da comunidade católica de não fazer esse registro. Acho que essa mudança que houve até na cultura do país requer da gente uma atenção maior com essa dimensão.

Eu acho que isso é importante, poder mostrar para a sociedade o que está acontecendo, e mostrar para nós mesmos. Quer dizer, quando eu sou um leigo em uma paróquia e eu ver o tamanho dos problemas que nós estamos enfrentando no Brasil, gigantescos, eu estou fazendo um negocinho mínimo, que não faz a menor diferença, e eu termino desanimando, porque o impacto é nenhum, praticamente, comparado com o mar de problemas, com o mar de dificuldades que existem. Mas quando você diz ‘eu sou um entre 15, 20, 30 milhões de católicos que estamos trabalhando e que estamos fazendo alguma diferença’. Isso ajuda também, motiva mais as pessoas a se dedicarem, é uma forma de reconhecer, valorar o trabalho que elas estão fazendo.

(Fonte site CNBB: Revista CNBB Social, Edição nº 01)

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