Dom Genival Saraiva de França
Bispo emérito de Palmares (PE)
Sempre houve e sempre haverá registros referentes a acontecimentos, a pessoas e a instituições que passam a fazer parte da história. Esses registros, feitos de forma metodológica, científica ou de maneira casual, informal, interessam a quem tem um espírito investigativo, agindo, portanto, um propósito determinado, ou a quem é movido pela curiosidade, não revelando, assim, maior preocupação com a fundamentação da informação, do conhecimento. De qualquer maneira, todos fazem uma leitura da realidade, buscando uma fundamentação consistente ou satisfazendo-se com uma compreensão superficial. Obviamente, não se pode associar o conhecimento da realidade, única ou preponderantemente, ao maior grau de instrução, de informação, por parte das pessoas, uma vez que, sabidamente, existe o senso comum e, em muitos casos, há distorções de enfoque, desvirtuações de finalidades, desvios de conduta na leitura da realidade, conforme o centro de interesse.
Sob essa ótica, considerando a extensão e a tragicidade de suas consequências, todas as pessoas estão fazendo sua leitura a respeito da pandemia do novo coronavírus, com maior ou menor nível de compreensão, é claro. Não podendo ser diferente, tendo presentes o princípio da liberdade e o direito de expressão, são muitos os pontos de vista e, consequentemente, muitas as condutas, individuais e coletivas, frente à pandemia, qualquer que seja o ângulo sob o qual se perceba a vida do povo – economia, trabalho, lazer, prática religiosa, etc. Embora, compreensivelmente, diferentes, em relação a determinados aspectos e condutas, esses pontos de vista, da parte de pessoas e instituições, necessariamente, devem chegar a um necessário, a um indispensável grau de convergência, em vista do bem comum. Nessa matéria, é preciso administrar, concretamente, o direito da livre circulação e a exigência do isolamento social, o apelo do espírito gregário e a necessidade do distanciamento interpessoal. Diante disso, não deixa de ser inevitável o que está acontecendo na prática como, por exemplo, o conflito de interesse, ante medidas restritivas que priorizam a vida e o retorno a atividades econômicas, na sua plenitude.
O registro da pandemia contém números, envolve pessoas e revela a face da história. Desde que foi identificada a epidemia do coronavírus, em curto espaço de tempo, os números, em termos absolutos ou percentuais, tornaram-se alarmantes porque espelham a rápida velocidade de sua propagação, daí o seu caráter pandêmico, e a alta incidência de sua contaminação. Sem dúvida, os números impressionam, chegam a ser chocantes, inclusive. No entanto, com o decorrer do tempo, há o perigo de se fazer, friamente, a leitura dos números, mesmo quando o indivíduo tem compreensão de seu alcance social, mesmo quando os guarda na memória. Para que isso não aconteça é preciso ter consciência do significado dos números. Dentro deles estão pessoas, suas causas, sua história; daí a necessidade de fazer-se essa leitura com sentimento. Por essa razão, os registros diários de contágios, recuperações e mortes, que chegam ao conhecimento da população, devem ser lidos, antes de tudo, pelo coração.
Em duas orações que colocou no coração e nos lábios dos fiéis, diante da “dramática situação atual, carregada de sofrimentos e angústias que oprimem o mundo inteiro”, o Papa Francisco fala a “quem vive ansioso com o futuro incerto e as consequências sobre a economia e o trabalho.” Ele enquadra a pandemia na categoria de “provação” e para “quantos se sentem perdidos”, ele pede a Deus “que esta dura prova termine e volte um horizonte de esperança e paz.” Com a força dessas orações, neste contexto de pandemia, as pessoas podem contar também com essa iluminadora palavra de São João Crisóstomo, (séc. IV), diante de “aflições”, “angústias”, “tribulações” e “coisas que atormentam os homens”: “Tendo refletido sobre estas coisas, irmãos caríssimos, suportemos generosamente todas as adversidades que sobrevierem. Se Deus as permite, é porque são úteis para nós. Não percamos a esperança nem a coragem, prostrados pelo peso dos sofrimentos, mas resistamos com fortaleza e demos graças a Deus pelos benefícios que nos concedeu.” A essa altura, pode-se perguntar: que coisas “úteis” encontram as pessoas nos números da pandemia, cujos registros se tornam parte de sua história?