Vale de lágrimas

Dom Genival Saraiva de França
Bispo emérito da Diocese de Palmares (PE)

Dentre as muitas preces que falam ao coração das pessoas, que alimentam a fé cristã e que revelam a devoção mariana dos católicos está a Salve Rainha. Milhões de católicos a rezam, diariamente, no final da oração do Terço. Fundamentados na doutrina da Igreja, os católicos enxergam Maria como Mãe de misericórdia; por isso, na condição de filhos degredados, a invocam em sua vida terrestre; como peregrinos, a ela recorrem “neste vale de lágrimas”. Ao se dirigirem, dessa maneira, à Virgem Maria, confiantes, os católicos suplicam o seu olhar misericordioso, em face da realidade do sofrimento, da dor, do choro, da lágrima na vida dos seres humanos. Pedem-lhe que, terminado o seu desterro, lhes mostre Jesus, Filho bendito de seu ventre. Esta oração foi composta por um Monge Beneditino, Beato Hermann Contractus (1013-1054), que, nascendo com paralisia infantil, “tinha grandes dificuldades para se movimentar e mal podia falar. Aos sete, foi colocado num mosteiro beneditino por seus pais, que não conseguiam mais cuidar dele.” “Hermann, então, cresceu no mosteiro e, rapidamente, descobriu que, apesar de seu corpo estar paralisado, sua mente funcionava extraordinariamente bem. Ele se transformou em um estudioso da astronomia, teologia, matemática, história e poesia. […] Mas era ainda mais notável na sua gentil disposição e na sua devota vida interior. Tinha uma grande alegria e, apesar dos seus defeitos físicos, sempre sorria. Mais tarde, ficou cego. Foi então quando começou a compor. Sua mente e seu coração estavam ardendo como o amor de Deus, o que o inspirou a criar alguns dos hinos e orações mais conhecidos de todos os tempos.” Um dado de natureza histórica e a experiência pessoal da dor e do sofrimento levaram o Monge Hermano a fazer esta oração: “Naquela época, a Europa central passava por calamidades naturais, epidemias, miséria, fome e a ameaça contínua dos povos nômades do Leste, que invadiam os povoados, saqueando-os e matando. Frei Contractus nascera raquítico e disforme e, na idade adulta, andava e escrevia com dificuldade. Foi nesta situação que criou esta prece, mesclando sofrimento e esperança.” São Bernardo (1090-1153), foi uma das primeiras pessoas a invocar Maria como “Nossa Senhora”. “Segundo a tradição, certa vez, ao escutar seus irmãos cantarem a Salve Regina, seu coração irrompeu em êxtase, ao que surgiu a tríplice exclamação que hoje coroa esta oração: ‘Ó clemente, ó piedosa, ó doce Virgem Maria’.”

Todas pessoas que rezam a Salve Rainha sabem que sua vida cotidiana conhece o vale de lágrimas “É por isso que o grito cristão que se dirige a Deus, por intermédio da Virgem Maria, neste ‘vale de lágrimas’ que é a vida humana, mais do que expressão de alguém resignado à sua sorte, é, antes, o reconhecimento de que apenas Deus pode, verdadeiramente, resolver as lágrimas humanas – nossas e de tantos que vivem conosco.” Hoje, seguramente, a oração silenciosa de cada pessoa está revelando seu estado de espírito, seu sentimento, nesse momento angustiante vivido pela humanidade, ante a devastadora pandemia do novo coronavirus. O Papa Francisco, por seu exemplo e seu ensinamento, ajuda as pessoas a se colocarem diante desse grave problema, em atitude de oração. Em orações que coloca no coração dos cristãos, nesse contexto de pandemia, e, particularmente, nos lábios dos católicos, em sua oração comunitária, o Papa testemunha aquilo que as pessoas sabem e experimentam: a oração, em qualquer situação, não está “alheia aos angustiantes sofrimentos da humanidade”. Com essa certeza, reza o Papa, rezam os cristãos católicos, no mês de maio: “Na dramática situação atual, carregada de sofrimentos e angústias que oprimem o mundo inteiro, recorremos a Vós, Mãe de Deus e nossa Mãe, refugiando-nos sob a vossa proteção. Ó Virgem Maria, volvei para nós os vossos olhos misericordiosos nesta pandemia do coronavírus e confortai a quantos se sentem perdidos e choram pelos seus familiares mortos e, por vezes, sepultados duma maneira que fere a alma. Sustentai aqueles que estão angustiados por pessoas enfermas de quem não se podem aproximar, para impedir o contágio. Infundi confiança em quem vive ansioso com o futuro incerto e as consequências sobre a economia e o trabalho. […] Protegei os médicos, os enfermeiros, os agentes de saúde, os voluntários que, neste período de emergência, estão na vanguarda arriscando a própria vida para salvar outras vidas. Acompanhai a sua fadiga heroica e dai-lhes força, bondade e saúde. Permanecei junto daqueles que assistem noite e dia os doentes, e dos sacerdotes que procuram ajudar e apoiar a todos, com solicitude pastoral e dedicação evangélica.” Confiante na solidária e materna intercessão de Maria, o Papa antevê o fim da pandemia, na sua oração: “Vós, Salvação do Povo Romano, sabeis do que precisamos e temos a certeza de que no-lo providenciareis para que, como em Caná da Galileia, possa voltar a alegria e a festa depois desta provação.”

Em se tratando de pandemia presente em cerca de 231 países, o Covid-19 tornou o mundo um “vale de lágrimas” porque milhões de pessoas, de fato, estão derramando lágrimas, porque foram infectadas ou porque familiares e amigos seus estão entre os mais de 330.000 mortos.

 

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